A Hora do Lobo é um filme de Ingmar Bergman. Os antigos a chamavam assim
porque é a hora em que a maioria das pessoas morre… e a maioria nasce.
Nessa hora os pesadelos nos invadem, como o fizeram com o personagem
Johan Borg, interpretado por Max von Sydow.
Fernando Gabeira - terça-feira, 02 de outubro de 2012 | 17:50
Como projeto destinado a mudar a cultura política do País, o PT
fracassou no início de 2003. Para mim, que desejava uma trajetória
renovadora, o PT sobrevive como um fósforo frio. Entretanto, na
realidade, é uma força indiscutível. Detém o poder central, ocupou a
máquina do Estado, criou um razoável aparato de propaganda e parece que o
dinheiro chove em sua horta com a regularidade das chuvas vespertinas
na Floresta Amazônica.
Mas o PT está diante de um novo momento que poderia levá-lo a uma
crise existencial, como o personagem de Bergman, atormentado pelos
pesadelos. Pode também empurrá-lo mais ainda para o pragmatismo que
cavou o abismo entre as propostas do passado e a realidade do presente.
O PT sempre usou duas táticas combinadas para enfrentar as denúncias
de corrupção. A primeira é enfatizar seu objetivo: uma política social
que distribui renda e reduz as grandes desigualdades nacionais. Diante
dessa equação que enfatiza os fins e relativiza os meios, alguns quadros
chegam a desprezar as críticas, atribuindo-as às obsessões da classe
média, etiquetando-as como um comportamento da velha UDN, partido
marcado pela oposição a Getúlio Vargas e pela proximidade com o golpe
que derrubou João Goulart.
A segunda é criar uma versão corrigida para os fatos negativos, certo
de que a opinião pública ficará perdida na guerra de versões. Esta
tática é a que enfatiza o desprezo da política moderna pelas evidências,
como se o confronto fosse uma guerra em que a verdade é vitimada por
ambos os lados.
Acontece que essa fuga das evidências encontra seu teste máximo no
julgamento do mensalão. O ministro Joaquim Barbosa apresenta as
acusações com grande riqueza de detalhes. As teses corrigidas foram
sendo atropeladas pelos fatos. Não era dinheiro público?
Ficou claro que sim, era dinheiro público circulando no mensalão.
Ninguém comprou ninguém, eram apenas empréstimos entre aliados. Teses
que se tornam risíveis diante da origem e do volume do dinheiro. O PT
salvando o PP de José Janene, Pedro Correa e Pedro Henry da fúria dos
credores?
O relatório de Joaquim Barbosa apresenta o mensalão como uma
evidência reconhecida pela maioria do Supremo, dos órgãos de comunicação
e dos brasileiros. Como ficará a tática do PT diante dessa realidade?
Negar a evidência? É um tipo de reação que, mesmo em tempo de
prosperidade econômica, não funciona quando os fatos são inequívocos.
Ao longo de minhas viagens observei que o mensalão não havia afetado
as eleições municipais. Mas o processo está em curso. Algumas cidades já
estão afetadas, como São Paulo e Curitiba. Nesta ocorre algo bastante
irônico: o candidato Gustavo Fruet (PDT) é acusado de ter o apoio do PT e
por isso perde votos. Fruet foi um dos deputados que investigaram o
mensalão na CPI dos Correios.
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E A REAÇÃO?
A reação do PT diante da possível condenação de seus líderes vai ser
decisiva. Encontrará forças para reconhecer seu erro, aceitar o
julgamento do STF e iniciar um processo de autocrítica? Tudo indica que
não. A teoria conspiratória domina suas declarações. O mensalão foi uma
invenção da mídia golpista, dizem alguns. Na nota dos partidos aliados,
que deviam ser chamados de partidos submissos, acusa-se uma manobra da
oposição, como se tudo isso tivesse sido construído por ela, que
descansa em berço esplêndido.
Numa entrevista raivosa, um dos réus, Paulo Rocha (PT-PA), alega que
as denúncias do mensalão ocorrem porque Lula abriu o mercado brasileiro
aos países árabes. A tese conspiratória é tão clássica que os judeus não
poderiam ser esquecidos.
O ex-presidente Lula parece viver realmente a hora do lobo. Percorre o
Brasil atacando adversários e diz que, tal como venceu o câncer, vai
derrotar os candidatos de oposição. Se o ressentimento e o rancor brotam
com tanta facilidade dos lábios do líder máximo, o que esperar do
exército virtual de combatentes pagos para atirar pedras?
Este é um momento crítico na história do PT. Deve contestar estas
evidências com a mesma eloquência com que contestou outras. Mas as de
agora são transmitidas ao vivo, foram submetidas ao exame de ministros
do Supremo, estão coalhadas de fatos, depoimentos, provas.
Ao contestar as evidências o PT não inventa um caminho. Paulo Maluf
foi acusado durante anos de desviar dinheiro para o exterior e sempre
negou. A condenação e a eventual prisão de líderes não afastam o PT do
poder, mas transformam o encontro nos jardins da casa de Maluf em algo
mais que uma simples oportunidade fotográfica. O PT não só verteu
milhões para os caixas do partido Maluf, como aceitará a tática
malufista de negar as evidências, mesmo quando são esmagadoras.
Em defesa de Maluf pode-se dizer que ele nunca prometeu a renovação
ética da política brasileira. Usa apenas um mesmo e fiel assessor de
imprensa para rebater críticas nos espaços de cartas de leitores.
Descendente de árabes, Maluf jamais, ao que me consta, culpou uma
conspiração sionista por sua desgraça. Sempre foi o Maluf apenas, sem
maiores mistificações.
Montado numa máquina publicitária, apoiado por uma miríade de
intelectuais, orientado por competentes marqueteiros, o PT viverá em
escala partidária a aventura individual de Maluf: negar as evidências.
Até o momento nada indica que assumirá a realidade. Seu caminho deve ser
negar, negar, como o marido infiel nas peças de Nelson Rodrigues – por
sinal, o inventor da expressão “óbvio ululante”.
O mensalão não é um cadáver no armário, invenção de opositores ou da
imprensa. Nasceu, cresceu e implodiu nas entranhas do governo. É difícil
sentar-se em cima dos fatos. Ele são como uma baioneta: espetam.
Fonte: Tribuna da Imprensa.