Inesquecível história real sobre um homem por quem sempre nutri grande admiração.
Publicado no "O Ponte Velha" em 2007.
Imagem: internet
Era um tipo diferente e
estranho aquele... Homem de poucas palavras, aparentando ter passado dos 50
anos, muito alto, magro, braços enormes com números tatuados em azul na altura
de um dos punhos (que se via de relance), pernas muito compridas, cabelo
grisalho cortado bem curtinho, rosto vincado; marcado pela dura vida passada.
Nariz afilado com uma verruga numa das narinas, boca grande, orelhas maiores
ainda, olhos pequeninos, que às vezes brilhavam de maneira vívida, outras ficavam
meio que embaçados, tristes, distantes, parecendo perdidos em lembranças de
momentos fortes, com traços de cansaço. Olhar
que eu percebia através dos óculos “fundo de garrafa” com grosso aro
preto, assim como seu chapelão redondo, de feltro, enterrado até a testa e cuja
aba lhe cobria quase a metade dos ombros, mas que certamente o protegia do sol.
Estava sempre com um surrado paletó preto “risca de giz” e camisa abotoada até
o pescoço, porém sem gravata. Usava invariavelmente um mesmo par de sapatos social
preto (que já tinham tido lá seus dias de glória), encadarçado com barbantes,
meias que haviam sido brancas e
amarelaram com o passar dos tempos, a boca dos canos esgarçadas e arriadas,
deixando à mostra parte dos ossos do calcanhar. Calças largas de linho cinza,
presas à cintura por um cinto de cor indefinida, de onde saía uma língua de
couro que lhe caia até quase a metade da coxa, com a bainha sempre presa por
elásticos pra evitar um enrosco na corrente da bicicleta; uma Philips preta
(seu único meio de transporte), com banco de couro e molas, que rangiam a cada
pedalada, e, um guarda-chuva enrolado, eternamente preso ao quadro da mesma. No
porta bagagens, uma caixa de madeira que usava para carregar os ovos que
vendia. Morava lá na Fazenda da Barra, numa pequena propriedade rural na
comunidade judaica, perto da chácara do “tio” Maércio, onde passávamos as
férias escolares. Era de lá que o conhecia desde os anos 50. Mas o fato que vou
narrar, se deu por volta de 1965. Pois é... Eu já era bancário, apesar da pouca
idade (15 anos) e trabalhava como contínuo. Aliás, registre-se que naquele
tempo, TODO o serviço bancário era manual, viu gente?! Nada de computadores ou
algo que sequer se aproximasse disso. As máquinas mais modernas que tínhamos
por lá eram elétricas: uma de escrever e outra de somar! Caneta só tinteiro.
Esferográfica era coisa a ser inventada.
Na
época, o expediente bancário para o público começava as oito da manhã e
terminava as quatro da tarde, sem intervalo. Normalmente eu saía pro almoço por
volta de onze e meia e retornava próximo de uma da tarde. Fazia minhas
refeições, rapidamente, no extinto e saudoso Bar Caçula, indo em seguida pra
loja de meu pai, na Alfredo Whately (Casa das Miudezas) para que ele e meu tio
(João) pudessem almoçar. O tio voltava logo, pois morava perto. Meu pai comia
em casa também, mas um pouco mais distante (na Eduardo Cotrim) sem hora certa
pra voltar. Nesse espaço de tempo, a loja ficava sob minha responsabilidade.
Pois bem... Certo dia, o “seu” Hans, vai ao Banco e o atendo no balcão. Acho
que era um depósito (o pior era escrever o nome Hirsfield, com aquela caneta de
pena que a gente molhava no tinteiro e às vezes borrava tudo.) Atendi-o em
alguns minutos e ele saiu. Logo a seguir, deu minha hora de almoço. Após a
rápida refeição, fui pra loja cobrir o
horário do pai e do tio. Lá eu tirava a gravata e paletó que usava pra compor o
tipo “bancário”. Nesse meio tempo em que estava sozinho, entra o “seu” Hans.
Ele me dá uma lista de coisas que precisava: arame, pregos, parafusos, etc.
Comecei a separar a mercadoria e notei que ele me olhava de maneira esquisita.
Levei uns vinte minutos pra atender seu pedido, embrulhar, receber e fazer o
troco. Foi embora me olhando meio enviesado. Parecia desconfiado... Não demorou
pro tio João chegar. Comentei sobre o
freguês e ele me disse que “seu” Hans era assim mesmo, meio esquisito. Voltei
imediatamente pro Banco. Passados uns quinze minutos, entra o “seu” Hans
novamente e o atendo. Queria falar com “a Maércio”... Expliquei-lhe que ele
estava em horário de almoço, mas não devia demorar. Sentou-se num banco de
madeira que tinha lá e ficou me olhando fixamente um bom tempo. Eu já estava
até meio sem jeito quando bruscamente se levanta, vai até o balcão onde eu
estava e pergunta com aquele sotaque
carregado: “Você ter uma irrmaum???” Pra não ter que ficar explicando o
acidente que tinha vitimado minhas duas irmãs recentemente (o assunto me
incomodava muito!) disse-lhe que sim. Ele só balbuciou um “Aah!!!” E voltou a
se sentar. O tio Maércio chegou e eles sumiram na sala da gerência. Não o vi
mais naquele dia. Algumas semanas depois (ele ia ao Banco com freqüência, e
sempre me olhava de esgueio) eis que se dirige a mim e pergunta: “Sua irrmaum
sumiu do loja de sua babai. Que houve?” Aí caiu a ficha... Eu, muito ordinário
e sem-vergonha, disse que ele estudava fora. Limitou-se ao tradicional “Ah!!” e
calou-se. Dias depois, volta e me diz: “Nunca via irrmauns gêmeas tão iguais no
meu vida, querria tanto ver as dois juntas. Quando ele vem?”. Como consegui
segurar o riso, não sei. Mas respondi, sério, que não sabia. E tratei de sair
de perto. Fui rir no banheiro... Não é que o danado foi falar com meu pai? Uns
quinze minutos depois; telefone pra mim. Meu pai pede que vá até a loja. Urgente!
Fui... me borrando de medo! Sabia o que me
esperava... “Mentiroso e safado” foram os adjetivos mais leves que meu pai usou
contra mim. “Pede desculpas pro “seu” Hans...Anda!” E cascudo comendo solto...
Desculpas cabisbaixas pedidas, “seu” Hans sai sorrindo (nunca o tinha visto
sorrir!) e dizendo: “Náu bate muito nela náu, ela serr muito inteligente e
brincalhona!”. Pra encurtar. Levei mais uns tabefes à noite em casa, peguei 15
dias de castigo (sem cinema e clube) e toda vez que o “seu” Hans ia ao banco ou
à loja, me refugiava no banheiro. Pra rir... de vergonha!!!
Aproveito para me solidarizar com as vítimas do
Holocausto, pois foi vendo o noticiário sobre o toque de silêncio em Israel no
dia 16 p.p. que me lembrei dessa história do Sr. Hans Israel Hirsfield, que não
vejo já há muitos anos, mas por quem guardo muito respeito, carinho e
admiração. Apesar da brincadeira dos gêmeos...
Shalom aleikhem.
ÓFernando Lemos – 19/04/2007