Há 65 anos, Raquel de Queiroz escreveu sobre a Magnitude
do Voto.
O texto é mais que atual. Poderia ter sido escrito hoje.
Vale reler. E meditar...
Raquel de Queiroz(*) - Revista "O Cruzeiro" 11/janeiro/1947:
"Não sei se vocês têm meditado
como devem, no funcionamento do complexo maquinismo político que se chama
govêrno democrático, ou govêrno do povo. Em política a gente se desabitua de
tomar as palavras no seu sentido imediato.
No entanto, talvez não exista, mais
do que esta, expressão nenhuma nas línguas vivas que deva ser tomada no seu
sentido mais literal: govêrno do povo. Porque, numa democracia, o ato de votar
representa o ato de FAZER O GOVÊRNO.
Pelo voto não se serve a um
amigo, não se combate um inimigo, não se presta ato de obediência a um chefe,
não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira definitiva
e irrecorrível, o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão governar por
determinado prazo de tempo.
Escolhem-se pelo voto aquêles que
vão modificar as leis velhas e fazer leis novas – e quão profundamente nos
interessa essa manufatura de leis! A lei nos pode dar e nos pode tirar tudo,
até o ar que se respira e a luz que nos alumia, até os sete palmos de terra da
derradeira moradia.
Escolhemos igualmente pelo voto
aquêles que nos vão cobrar impostos e, pior ainda, aquêles que irão estipular a
quantidade dêsses impostos. Vejam como é grave a escolha dêsses “cobradores”.
Uma vez lá em cima podem nos arrastar à penúria, nos chupar a última gôta de
sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do bôlso.
E, por falar em dinheiro, pelo
voto escolhem-se não só aquêles que vão receber, guardar e gerir a fazenda
pública, mas também se escolhem aquêles que vão “fabricar” o dinheiro. Esta é
uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos seus escolhidos.
Pois, se a função emissora cai em
mãos desonestas, é o mesmo que ficar o país entregue a uma quadrilha de
falsários. Êles desandam a emitir sem conta nem limite, o dinheiro se multiplica
tanto que vira papel sujo, e o que ontem valia mil, hoje não vale mais zero.
Não preciso explicar muito êste
capítulo, já que nós ainda nadamos em plena inflação e sabemos à custa da nossa
fome o que é ter moedeiros falsos no poder.
Escolhem-se nas eleições aquêles
que têm direito de demitir e nomear funcionários, e presidir a existência de
todo o organismo burocrático. E, circunstância mais grave e digna de todo o
interêsse: dá-se aos representantes do povo que exercem o poder executivo o
comando de tôdas as fôrças armadas: o exército, a marinha, a aviação, as
polícias.
E assim, amigos, quando vocês
forem levianamente levar um voto para o Sr. Fulaninho que lhes fêz um favor, ou
para o Sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governador, coitadinho, ou para
Beltrano que é tão amável, parou o automóvel, lhes deu uma carona e depois
solicitou o seu sufrágio – lembrem-se de que não vão proporcionar a êsses
sujeitos um simples emprêgo bem remunerado.
Vão lhes entregar um poder enorme
e temeroso, vão fazê-los reis; vão lhes dar soldados para êles comandarem – e
soldados são homens cuja principal virtude é a cega obediência às ordens dos
chefes que lhe dá o povo. Votando, fazemos dos votados nossos representantes
legítimos, passando-lhes procuração para agirem em nosso lugar, como se nós
próprios fôssem.
Entregamos a êsses homens
tanques, metralhadoras, canhões, granadas, aviões, submarinos, navios de guerra
– e a flor da nossa mocidade, a êles prêsa por um juramento de fidelidade. E
tudo isso pode se virar contra nós e nos destruir, como o monstro Frankenstein
se virou contra o seu amo e criador.
Votem, irmãos, votem. Mas pensem
bem antes. Votar não é assunto indiferente, é questão pessoal, e quanto!
Escolham com calma, pesem e meçam os candidatos, com muito mais paciência e
desconfiança do que se estivessem escolhendo uma noiva.
Porque, afinal, a mulher quando é
ruim, dá-se uma surra, devolve-se ao pai, pede-se desquite. E o govêrno, quando
é ruim, êle é que nos dá a surra, êle é que nos põe na rua, tira o último pedaço
de pão da bôca dos nossos filhos e nos faz aprodecer na cadeia. E quando a
gente não se conforma, nos intitula de revoltoso e dá cabo de nós a ferro e
fogo.
E agora um conselho final, que
pode parecer um mau conselho, mas no fundo é muito honesto. Meu amigo e leitor,
se você estiver comprometido a votar com alguém, se sofrer pressão de algum
poderoso para sufragar êste ou aquêle candidato, não se preocupe. Não se prenda
infantilmente a uma promessa arrancada à sua pobreza, à sua dependência ou à sua
timidez. Lembre-se de que o voto é secreto.
Se o obrigam a prometer, prometa.
Se tem mêdo de dizer não, diga sim. O crime não é seu, mas de quem tenta violar
a sua livre escolha. Se, do lado de fora da seção eleitoral, você depende e tem
mêdo, não se esqueça de que DENTRO DA CABINE INDEVASSÁVEL VOCÊ É UM HOMEM
LIVRE. Falte com a palavra dada à fôrça, e escute apenas a sua consciência.
Palavras o vento leva, mas a consciência não muda nunca, acompanha a gente até
o inferno”.
(*)Rachel de Queiroz - (Fortaleza, 17 de novembro de 1910 — Rio de Janeiro, 4 de novembro de 2003) foi uma tradutora, romancista, escritora, jornalista, cronista prolífica e importante dramaturga brasileira. Autora de destaque na ficção social nordestina. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Em 1993, foi a primeira mulher galardoada com o Prêmio Camões, equivalente ao Nobel, na língua portuguesa. Ingressou na Academia Cearense de Letras no dia 15 de agosto de 1994, por ocasião do centenário da instituição.
Recebido por e-mail do amigo L.T.
Prezado, Fernando!
ResponderExcluirO texto parece que foi escrito ontem. Tem força, vitalidade e muita sinceridade.
Parabéns por ter escolhido belíssimo texto para divulgar, próximo as eleições.
É isso mesmo! Pensem direito antes de votar.
http://didimogusmao.blogspot.com.br/