Imagem ilustrativa: Artefato Cultural. |
OS CEGOS
Eles
eram quatro e fizeram parte da minha infância/juventude e, acredito, da dos
resendenses dos anos 50/60. Não tinham
afinidades entre si. Eu os observava muito, e assim como o Sr. Gilberto Izoldi,
Elias Atta e muitos outros sobre quem
ainda pretendo escrever, se tornaram (pra mim) figuras folclóricas e lendárias.
Todo mundo os conhecia. Nunca os vi mendigando e não sei como faziam para se
manter. Cada um com sua característica. Dois eram brancos e os outros dois,
afro-descendentes (politicamente correto, correto?). Não sei o motivo da
cegueira que os acometeu, e só de um eu conhecia a morada. O nome deste, fiquei
sabendo dia desses pelo Silvinho da loja de uniformes esportivos da galeria
Campos Elíseos. Era o Sr. Vargas, que morava no Alto dos Passos, perto da caixa
d’água velha, pai do José Cláudio (hoje militar) e do Luis Cláudio. Homem
bonitão, alto, olhos claros, cabelos sempre penteados (Gumex? Alguém se
lembra?) barba sempre bem escanhoada, perfumado, bigodes aparados com
perfeição, uma bengala branca, assim como suas calças, sempre limpas, sandália
de couro natural e invariavelmente acompanhado do filho menor, de calcinha
curta, suspensório e também com olhos muito claros, sempre arrumadinho e
cheiroso. Mas a característica que o identificava era o assobio. Gente, ele
assobiava com uma maestria ímpar. E seu assobio tinha dupla finalidade:
encantar nossos ouvidos e avisar que tava passando. Eu morava no caminho que ia
pra sua casa, por isso, quase todas as manhãs (ou sempre que ele saía) eu ouvia
seu assobio e saía na janela para vê-lo passar. Acho que o menino-filho o
acompanhava para ajudar a atravessar as ruas, sempre quietinho e com aquele
olhar meigo, meio perdido, meio encantado com o pai que tinha... Uma imagem que
jamais me sai da cabeça essa dele descendo a Padre Marques assobiando com o
filhinho pelas mãos. Acho que seus limites eram de casa até a praça O.Botelho.
De vez em quando o via em Campos Elíseos acompanhado da esposa (também sempre
bem arrumada). O outro cego branco também tinha olhos claros, mas não o mesmo
cuidado com o trato no vestir e se cuidar. Com a barba sempre por fazer, andava
por quase toda a cidade com uma varinha pintada de branco na ponta, a camisa
aberta até o peito e pra fora das calças. Sua principal característica era o
eterno mau humor. Se a gente tivesse no seu caminho e ele esbarrasse a varinha
na gente, sempre resmungava alguma coisa ininteligível. E me dava a impressão
que vivia mastigando as palavras e a própria boca. Nunca entendi o que ele
dizia e me assustava com sua presença. Mas acho que não fazia mal a ninguém. Os
outros dois eram afro-descendentes e muito parecidos em tudo: Altos, magros,
roupas um tanto quanto rasgadas e sujas; uma cordinha de sisal esgarçada
amarrando a cintura das calças, chapéus de palha na cabeça, sacos de pano às
costas (que será que carregavam ali? Nunca soube!) e varinhas de bambu pra
servir de guia. Sempre rodeados de um bando de crianças, umas iam à frente e
atrás, outras dos lados e muitos, mas muitos cães juntos. Por isso, quando
passavam movimentavam a rua. Ambos fumavam. Acho que um deles pitava até um
cachimbinho daqueles de barro, lembram? Mas o interessante no caso deles, é que
não podiam se encontrar que a coisa ficava feia. Era briga na certa. E começava
assim: Os cães de um e de outro se avançavam. As crianças iam apartar e
acabavam brigando entre si. Choravam... Aí, os cegos começavam a esbravejar e
dar varadas para acertar o cachorro do adversário. Acabavam acertando as
crianças, que choravam e gritavam mais ainda. Eles, sem saber o que acontecia,
gritavam cada vez mais um com o outro, os cães não se largavam, ganiam,
uivavam, se mordiam e tome de varada pra lá e pra cá. Quem assistia, não tinha
como entrar pra separar. Seria alvo fácil pra tomar bifa de vara sem ter nada
com isso. Como separar esse aranzé todo? Era no grito meus amigos! Geralmente
as senhoras das imediações deixavam seus afazeres, saiam às ruas e entre rindo
(era engraçado mesmo) e gritando pediam, em nome de Deus, que parassem com
aquilo. Sempre funcionava. A briga dos cães era interrompida com baldes de água
fria. E cada um seguia seu rumo até o próximo encontro... Sabe-se lá onde
seria... Pois um desses “próximos” se deu bem em frente à (já extinta) Cantina
Portuguesa (alô Alfredo, aquele abraço!). Pra quem não sabe, fica aqui o
registro: Ali existia um ponto de ônibus e táxis, bem no meio da Alfredo
Whately (que era de mão dupla, se não estou enganado). Era chamado (não sei
porque) Tabuleiro da Baiana. Essa construção de concreto e piso alto começava
quase em frente à (hoje) loja Lamartine e se estendia até o Rei dos
Salgadinhos. Além de ponto de ônibus e táxis, trabalhavam ali muitos engraxates
profissionais, naquelas cadeironas grandes e altas, e onde a gente se sentia
rei lá em cima. Também tinha gente vendendo pipoca, algodão doce e amendoim
torrado naquelas latas com carvão acesso (mas que lembrança gostosa), além da
turma que escrevia o jogo do bicho. Enfim, um lugar muito movimentado. Pois
bem... Voltando ao assunto, eles se encontraram nesse ponto. E começou uma
briga das boas. Por ali, não existiam senhoras pra gritar com eles e Deus devia
ter ido tirar uma soneca. Mas tinham os que trabalhavam no tabuleiro da baiana.
Gente muito boa... Taxistas, bicheiros e etc... Em vez de tentar separar,
tacaram mais lenha na fogueira. E foi juntando gente. E as varas cantando no
ar. E a criançada gritando e chorando, a
cachorrada se pegando legal... E a platéia se deleitava. Riam e corriam pra não
levar varada. E foi esquentando cada vez mais... Até que um gaiato (dizem que
foi taxista) gritou: “FACA NÃO!!! AÍ É COVARDIA!!!” Gente, os cegos ficaram
alucinados. Um pensando que o outro tava armado de faca. Passaram a distribuir
varadas a esmo, tentando atingir o outro, acabaram partindo pra cima da platéia
que ria a não mais poder, e foi um corre-corre dos diabos. Até que ele se
tocaram... Costas com costas. Pararam... Um pergunta em voz baixa: “Ce tá com
faca?” O outro responde “Não!!!”. “Então agora é nóis neles...” E partiram pra cima da platéia, os
dois lado a lado como dois samurais enfurecidos. Deram ordens pras crianças
pararem e separar os cães e botaram todo mundo pra correr. Depois que tudo se
acalmou, sentaram no chão da calçada, lado a lado e um disse pro outro; “Ce vai
pra onde?”. Pro Manejo foi a resposta. “Então eu vou pra praça...”
Levantaram-se e saíram em direções opostas. Detalhe: O homem do algodão doce
deu algodão pra toda a criançada, que com as carinhas lambuzadas de
açúcar, seguiram os pais (?), felizes da
vida...
Assim, meus amigos, era Resende. Duvido que nos dias de hoje
um deles conseguisse atravessar a rua, né não “Urbanus”? Teriam sido
atropelados (eles e as crianças) há muito tempo...
©Fernando Lemos - Outubro/2005
Atualização: "Urbanus" era um dos pseudônimos do saudoso e querido amigo Toninho Capitão.
Este texto foi publicado, na época, no jornal "O Ponte Velha".
Para ler sobre Gilberto Isoldi, clique AQUI.
Breve publicarei uma homenagem feita ao Dr. Elias Atta, "O Médico das Canetas".
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Breve publicarei uma homenagem feita ao Dr. Elias Atta, "O Médico das Canetas".
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