A Morte de Timburibá é uma prosa do Dr. José Ezequiel Freire de Lima publicada em seu Livro Póstumo de 1910. Ezequiel Freire, como era conhecido nos meios literário, jornalístico e artístico de sua época, foi no passado, um dos mais importantes poetas do Brasil. Tanto que sua obra "Flores do Campo" recebeu do grande Machado de Assis o seguinte comentário: "Não sei se escreveu mais versos o Sr. Ezequiel Freire; é de supor que sim, e é de lastimar que não". Este conceito foi o suficiente para lhe consagrar a obra. Foi precoce em tudo o que fez na vida, como se soubesse que ela lhe seria curta. Viveu apenas 41 anos, tempo suficiente para mostrar ao mundo seu panteísmo latente e dignificante. Hoje seria aplaudido como um ferrenho ecologista em versos e prosas. "A Morte de Tymburibá", além de trazer lume ao que realmente ocorreu com este espetacular espécime provavelmente extinto de nossa flora, tem o condão de, com a precisa descrição da árvore em sí, acrescentar mais dúvidas sobre sua existência nos dias de hoje.
Este blog, na intenção de resgatar a memória de nossos grandes vultos, a exemplo da publicação da "A Lenda do Tymburibá", orgulhosamente publica agora este texto adaptado do original à ortografia atual, tendo o cuidado de inserir ao final, a digitalização das páginas do original, o que acaba de ser feito também ao final da "Lenda do Tymburibá".
Em tempo oportuno, publicaremos as biografias completas do Dr. Ezequiel Freire, bem como do Dr. João Maia e outros.
A Morte de Timburibá
(1850 - 1891) |
Há quinze anos, avistava-se ainda, campeando solitário no planalto da colina dos passos sobranceira a Resende, um colossal representante das florestas virgens – soberbo Tymburibá.
Pelas fraldas e aclives do Morro estende-se a cidade, das mais belas no interior da província fluminense.
Corre-lhe mansamente aos pés o formoso Paraíba, plácido como um lago, sem murmúrio, sem leve ruga na sua larga superfície espelhante, apenas arrufada, nas tardes cálidas, pela asa veloz das taperás, que se entrecruzam em caprichosos volteios, rente à flor d’água, numa franca alacridade de passarinhos felizes.
Fronteira à cidade, fechando o Vale em semicírculo, ergue-se a admiranda Serra do Itatiaya, em cujo cimo enfeixam-se as Agulhas Negras, uma das quais é a culminância do sistema orográfico brasileiro, pois, segundo o Dr. Francklin Massena, que lhe mediu a altura, tem a sua base assente a 2.994 metros sobre o nível do mar.
É comovedor espetáculo a contemplação da majestosa montanha sempre bela, quer, pelos tempos calmos do inverno, recoste o perfil da sua gingantea ossatura no céu azul; quer, pelos cálidos verões, se lhe acastelem no dorso altíssimo bulcões de nuvens tempestuosas, negras, acobreadas.
Estampa-se profundamente n’alma a impressão causada pelo aspecto alpestre a minha pátria serra querida.
A pouco ainda, ao melancólico cair das tardes de maio, quantas vezes, reclinado sobre o balaústre da ponte que liga a velha cidade aos novos bairros dos Campos Elíseos, deixei fechar-se sobre mim a noite, imerso no enlevo em que ali me quedava, contemplando o quadro agreste, sentindo sobre meus pés placidamente derivar o Paraíba, sem um murmúrio, sem uma ruga na sua larga superfície espelhante, apenas de leve arrufada pela asa fugaz das andorinhas que lhe brincavam à tona em caprichosos volteios!...
Foi, em visita à vivenda rústica de amigos, pousada em um dos contrafortes da gigantesca serra, que, ferido pela impressão estética, o espírito de Narcisa Amália concebeu a admirável ode – O Ita-Tiaya – um dos mais belos florões da poesia descritiva nacional. Vede:
Em derredor às planícies
Nivelam-se as serranias;
Envolto nas brumas frias
Transparecem os outeiros;
E o olhar ardente e ávido
Contempla os montes perdidos,
Como troféus reunidos,
Como tombados guerreiros.
Salve! Montanha granítica!
Salve! brasíleo Himalaya!
Salve! Ingente Itatiaya,
Que escalas a imensidade!...
Distingo-te a fronte valida,
Vejo-te às plantas rendido
O meteoro incendido,
A soberba tempestade!...
De teu dorso assomam ínvios
Feixes de pedra em pilastras,
Órgam gigante que enastras
De mil grinaldas alpestres!
Quem lhes calça a base, intrépido,
Vendo o sublime portento,
Liberta seu pensamento,
Das amarguras terrestres!
Rasgando o horizonte plúmbeo
O sol te envia seus raios;
As nuvens formam-te saios
Quais ligeiras nebulosas!
Miram-te as flores hetéreas,
Cobrem-te espumas de neve,
Dão-te o pranto fresco e leve
Da noite as fadas formosas!
E quando envolvem-te as aspuas
Queimando o chão roceado,
Funde-se o thyrso gelado,
Caem profusos fragmentos!
Muda-se o quadro de súbito:
- Chovem cristais dos pilares,
E nu se perde nos ares
O perfil dos monumentos!...
Eram três belos ornamentos da paisagem resendense; o Itatiaia, o Paraíba, e, no coração da cidade, aquele velho Timburibá, majestoso padrão da sua antiga flora já há esse tempo devastada pelo inexorável machado do caipira derrubador.
Conhecida familiar dos viandantes, erguia-se a bela árvore, como a atalaia do pouso hospitaleiro, sobre toda a vegetação circunjacente na vasta área que o olhar cansado do caminhante abrangesse. Saudavam-na desde logo, como ao nome protetor do rancho amigo, tropeiros e viajantes transeuntes pela estrada real, que ligava a corte às cidades de Serra-acima, antes que o bufo da locomotiva e o estrépito do trem de ferro fossem espantar para regiões mais sertanejas a poesia das antigas viagens, viagens a cavalo, cansativas, morosas, mas pitorescas.
Entre Campo Belo e Divisa, os navegantes e viajores que iam ou vinham, rio abaixo ou rio acima; quer sobre o dorso de uma boa mula de cela, ao passo cadenciado e macio da marcha viageira; quer sobre o toldo de uma daquelas antigas barcas tripuladas por marujos portugueses, e que se ocupavam no carreto do café entre o Varadouro e a Barra; o viajante de terra ou do rio desde muito ao longe no caminho avistava, erguido e solitário na vastidão dos campos e bambuzais em derredor, o velho Timburibá dos Passos, destacando sobre, a limpidez do céu, a sua ramaria frondente, de folhagem miúda, donde pendiam flocos dessa parasita filiforme, parda, móbil a mais leve aragem, tão amiga dos alterosos tipos vegetais: -Jequitibás, braúnas e figueiras bravas.
Na primavera, quando a seiva ascende da profunda terra aos galhos das árvores e se expande em rebentos e flores, o Timburibá arreiava-se de um singular adorno: Dos seus galhos desciam longos fios delgados sustentando sua extremidade inferior vagens cilíndricas que se balouçavam, batendo-lhes o vento, a uma grande altura do solo, como pingentes de um gigantesco candelabro.
Quantas vezes, infante ainda, colegial travesso, de camaradagem com outras crianças ia eu brincar o tempo-será, ou perseguir os cabritos vagabundos, no guaixumal que se estendia pela chapada aos pés do Timburibá altivo!
Ai perto ficavam o cemitério e a casa mortuária, à sombra daquele gigante que sobrevivera à passagem destruidora da civilização, e lá campeava agora, testemunha solitária e muda de outras eras, -vencedor na luta pela vida travada entre os vegetais da mata virgem; eterna batalha na qual todos somos combatentes, e cujos episódios últimos foram naquele sítio o extermínio do selvícola e a conflagração da floresta.
De abandono ou de velhice, fazem 15 anos, caiu um dia o Timburibá. Seu tronco vendido pela municipalidade ao coveiro do cemitério, e por este revendido em lenha, deu-lhe para comprar o enxoval e constituir o primeiro dote da filha.
Simpático destino do meu saudoso camarada de infância...
Nesse tempo eu atravessava a bela quadra da vida em que todo homem é poeta.
Amigo da natureza, nascido e criado na sua vizinhança benéfica; conhecendo os encantos da solidão agreste; amando as aves como queria ao gado e como prezava o rio; achando-me bem quando na pequena canoa de pesca, abandonado o remo, deixava-me boiar ao grado da correnteza; sentindo-me bom quando ia solitário através da mata por um carreador povoado dos rumores da folhagem e dos pios dos pássaros; percebendo até a vida misteriosa dos seres inanimados; abrasado de panteísmo, vendo em toda a Natureza o único deus acessível ao meu espírito- a força imanente das coisas; adolescente e poeta, doeu-me a morte desamparada a que sucumbira o Timburibá (como ao povo está doendo o desterro do seu imperador valetudinário) e fiz estes versos cheios de uma indignação que sem dúvida a todo o mundo parecerá caricata:
Adeante, Musa:
subamos a ladeira; além avulta,
fronteira ao cemitério a arvore amiga.
Quero encostar-me àquele tronco anoso,
múmia soberba que o fastigio atesta
das majestosas selvas primitivas!
Ei-lo como um expectro do passado,
hirto, imponente, estático, impassível
nas solidões imensas que o rodeiam!
Debalde as ventanias rugidoras
flagelaram-lhe a coma, e o raio ousado
fendeu-lhe a fronte secular, debalde!
Fora impotente a fúria assoladora
das tempestades bravas pra tomba-lo!
Ao verme só foi dado – pequenino –
quebrar o orgulho desse rei selvático,
roer o cerne rijo até o âmago
do secular colosso!
Após vieram
os humanos cupis, e o rei das selvas
atônito escutou a voz das larvas,
a injúria vil dos vermes discursistas,
ao som da Filarmônica Esmeralda.
Foi o golpe final, o couce fátuo
do sendeiro boçal, impado, estulto,
na fronte do leão agonizante!
Aludo na sensaboria destes versos a uma espécie de ofício de corpo presente que os resendenses celebraram com necrológios e marchas fúnebres perante o tronco do Timburibá encontrado caído por terra, ao alvorecer de uma bela manhã risonha e doce, de alegre sol, pelo coveiro que madrugara na faina de despachar a dois tardos fregueses pobres, chegados na véspera à necrópole resendense.
Bem era aquela pressa do coveiro; pois toda a noite, envoltos na rede que lhes servira ao mesmo tempo de mortalha e de esquife, aqueles pobretões defuntos haviam aguardado, talvez ao relento, hirtos e resignados, que lhe cavassem o leito do derradeiro descanso, a que todos nós os felizes como os desgraçados temos direito na vida... para a morte...
Abaixo páginas originais digitalizadas do Livro Póstumo
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Fonte: Livro Posthumo - Weisflog Irmãos - São Paulo - 1910 (para baixar arquivo PDF do livro completo, CLIQUE AQUI.
Digitalização: Fernando Lemos
Caro amigo Fernando
ResponderExcluirDesejo parabenizá-lo pela postagem e preciosa divulgação da história e memória de nossa terra, que estava tão esquecida nas brumas da antimemória...!
Um grande e cordial abraço de José Eduardo Bruno SP, 23/04/11